Infelizes de nós, se preferimos as aparências à fé!
Dos filhos de Jessé, aquele que Samuel julgava estar destinado a ser rei de Israel tinha semblante e estatura imponentes; não era como Davi, jovem realmente saudável e belo, mas alguém que poderia ser desprezado pelos filisteus. Samuel e Golias, respectivamente um profeta de Deus e um gigante pagão, julgavam pelas aparências. Quando Samuel viu a aparência e o rosto viris de Eliab, disse: “Porventura está diante do Senhor o seu ungido?” (1Sm 16, 6). E Deus lhe respondeu: “Não olhes para o seu vulto, nem para a altura da sua estatura, porque eu o rejeitei. O Senhor não vê como o homem: o homem vê a aparência, o Senhor vê o coração (1Sm 16, 7). E quando Golias “olhou e viu Davi, desprezou-o, porque era muito novo, loiro, de aspecto gentil” (1Sm 17, 42). E Davi respondeu-lhe: “O Senhor não salva pela espada, nem pela lança, porque ele é o Senhor da guerra e vos entregará nas nossas mãos” (1Sm 17, 47).
Até naquela época — como em épocas posteriores — os fracos eram fortes e os fortes, fracos; os primeiros eram os últimos e os últimos, os primeiros; os poderosos eram derrubados de seus tronos e os humildes e mansos, exaltados.
E hoje mais ainda, quando se ocultou o Altíssimo sob a forma de servo, e, depois de subir ao Céu, enviou seu Espírito Santo como nosso Guia e Consolador invisível, hoje, muito mais do que outrora, devemos ser advertidos a não julgar pelas aparências, mas pelo que Deus diz. Quando a sua palavra e o mundo externo por Ele criado nos transmitem informações diferentes, temos o dever de confiar na palavra revelada, não no mundo visível. Não que este não seja um dom divino; todavia, quando se opõem esses dois dados, o revelado e o natural, Ele exigiu que, por um breve período de tempo, nós como cristãos confiássemos mais naquele do que neste, como uma espécie de humilde retribuição ao seu amor por nós — por um breve período, até que passe este mundo de sombras e nos encontremos naquele novo mundo, onde não se contradizem a visão e a audição, mas há unidade e harmonia absolutas em todas as coisas, pois Ele é a luz delas. Porém, até que chegue este momento, como filhos do Reino, somos chamados a caminhar pela fé, não pela visão.
Por isso recebemos vários alertas no Novo Testamento contra a
formação de juízos absolutos sobre os homens e as coisas a partir
daquilo que vemos: “Não julgueis antes do tempo, até que venha o
Senhor, o qual não só porá às claras o que se acha escondido nas
trevas, mas ainda descobrirá os desígnios dos corações; e, então, cada um receberá de Deus o louvor” (1Cor
4, 5). Novamente, São Paulo diz: “Considerai as coisas (mesmo só) pela
aparência. Se alguém se ufana de que é de Cristo, considere igualmente
dentro de si que, como é, de Cristo, assim também nós o somos” (2Cor 10, 7). E da mesma forma nosso Salvador: “Não julgueis segundo a aparência, mas julgai segundo a justiça” (Jo 7, 24).
Proponho analisar agora uma parte deste vasto assunto, isto é, quero insistir num ponto muito importante, algo necessário caso queiramos ser verdadeiros cristãos: a necessidade de formular as nossas noções e opiniões religiosas não a partir do que enxergamos, mas do que não enxergamos e apenas ouvimos — ou melhor, o grande erro em que se encontram os homens do mundo: realizar juízos sobre temas religiosos apenas por meio do que lhes diz a experiência da vida. Temos de crer nisto: a diferença entre os homens religiosos e os outros é que estes confiam neste mundo; aqueles, no mundo invisível. Ambos têm fé, mas um tem fé na aparência das coisas, e o outro, na palavra de Deus. Os homens do mundo supõem que tudo o que parece realmente é. Imaginam não haver nada mais profundo do que aquilo que se apresenta à primeira vista. Não conseguem imaginar que a verdade está escondida; que as personalidades, palavras, obras, profissões, fortunas, doutrinas e raciocínios dos homens devem ser analisados de forma cuidadosa e crítica antes que seja possível encontrar até mesmo os indícios da verdade.
Eles prontamente admitem que, nas ciências do mundo, a aparência é contrária à verdade das coisas. Entendem muito bem que os grandes mecanismos no sistema material são invisíveis, e que é enganoso aquilo que é visível. Não relutam em admitir que as estrelas não se movem, embora aparentemente se movam; e que os fluidos sutis e as influências misteriosas, que só foram detectados depois de séculos, são as causas das mais espetaculares revoluções na natureza; não obstante, julgam que é tolice suspeitar das aparências do mundo quando se trata de assuntos religiosos, ou buscar em meio às sombras passageiras do tempo os passos e os lugares de descanso do Eterno.
Por outro lado, a própria base da qual partem os homens religiosos é o
reconhecimento de que, mesmo estando contra eles as aparências deste
mundo, é em Deus que eles devem acreditar. Isso merece atenção, porque é
muito comum os críticos objetarem, e os cristãos perceberem como uma
objeção, que as doutrinas da Escritura contrariam as aparências. Mas,
seja qual for a importância da objeção na boca de um cético, ela é
irrelevante e ilógica quando se torna uma obsessão para os cristãos,
considerando que, quando nos tornamos cristãos, começamos por
reconhecer que as aparências estavam contra nós, decidindo, com a graça
de Deus, confiar mais na palavra dele do que na aparência. Esta
é uma imagem que poucas pessoas negarão, apresentada desta maneira.
Agora deixarei mais claro o que quero dizer por meio de exemplos
específicos, que (receio) dificultarão para muitos a recepção do meu
argumento.
1. Consideremos uma doutrina muito debatida e combatida hoje: a regeneração batismal. A Sagrada Escritura nos diz claramente que “quem não renascer da água e do Espírito Santo, não pode entrar no reino de Deus” (Jo 3, 5); que Deus nos salvou pelo “batismo de regeneração” (Tt 3, 5); que o “Batismo nos salva” (1Pd 3, 21); e que “somos lavados de nossos pecados” pelo Batismo. Não nos foi indicado nenhum outro meio para alcançar a regeneração ou o novo nascimento. Desse modo, assim como se diz que o Batismo nos faz passar de um estado de natureza para um estado de graça, se um homem não nasce de novo no Batismo, não está claro de que maneira ele poderá nascer novamente. Esta é a verdadeira doutrina, que sempre foi acolhida em toda a Igreja. Mas, por outro lado, pense em como é difícil a batalha que a fé tem de travar contra a experiência neste assunto — e como não há dúvida de que somente a fé pode vencê-la.
Que o Batismo realmente muda o estado moral de um homem e sua condição perante Deus; que dá a ele os meios para tornar-se um homem melhor do que seria em outra circunstância, e portanto, ao fim e ao cabo, dá a ele a oportunidade de ser alguém muito melhor ou muito pior do que teria sido sem o sacramento; que duas almas, uma batizada e outra não batizada, não estão na mesma condição moral, mas a batizada, por ter sido regenerada, é interiormente melhor ou pior do que a não batizada (ou as duas coisas ao mesmo tempo: melhor sob alguns aspectos, pior sob outros) — de modo que o Batismo pode ser comparado [a] ao efeito da luz do sol quando toma o lugar do crepúsculo, removendo a mesmice ou a monotonia da paisagem e levando até ela todos os tipos de matizes (agradáveis ou desagradáveis, a depender do quanto nos beneficiamos deles), [b] ou à educação, que também desenvolve e diversifica a mente, embora o faça de outra maneira: tudo isto parece ser inegável, segundo a Sagrada Escritura.
Todavia, inegáveis ou não, estes efeitos não são perceptíveis à primeira vista, ou talvez não o sejam de modo algum. Como aqui podemos ter um bom conhecimento sobre as pessoas, ou conhecê-las muito pouco; e como não conhecemos todas no mesmo grau, o que nos impede de compará-las, de modo geral, não somos capazes de descobrir os mínimos detalhes de sua personalidade. Por isso as grandes dificuldades que apresentarei constituem um obstáculo à doutrina da regeneração batismal, presente na Sagrada Escritura.
Deparamo-nos, pois, com estas surpreendentes aparências: [I] Pessoas
que são criadas sem Batismo podem ter personalidade, índole, opiniões e
conduta iguais às das pessoas que foram batizadas; ou, quando estas
diferem daquelas, tal diferença pode ser atribuída de forma suficiente
ou inequívoca à educação que tiveram.
[II] Uma pessoa não batizada por ser criada junto com pessoas batizadas e assimilar sua forma de pensar, seu modo de ver as coisas, seus princípios e opiniões, tal como se fosse batizada. Pode achar que foi batizada, e outros podem pensar a mesma coisa. Após uma investigação, é possível constatar que ela não foi batizada.
[III] Por outro lado, uma pessoa batizada pode assimilar o modo de agir, os sentimentos e a forma de falar daqueles que desprezam o Batismo. Assim, é possível que não seja melhor nem pior do que estes, mas apenas igual.
[IV] Uma pessoa não batizada pode ser batizada mais tarde na vida. Se era discreta e religiosa antes de ser batizada, pode permanecer assim depois, sem que haja mudança na consciência que tem de si ou na impressão que os outros têm dela.
[V] Ou [ela] pode ter formado uma personalidade desagradável antes do Batismo; pode ter sido rude e irreverente ou ter desenvolvido uma mentalidade mundana. Pode ter se aprimorado; pode ter tido fé suficiente para chegar ao Batismo e, até onde podemos julgar, pode tê-la recebido de forma digna. Não obstante, pode ser que esse estado de aperfeiçoamento seja preservado na mesma medida em que se pressupõe que teve fé para chegar até o Batismo, mas, aparentemente, não numa medida superior.
[VI] Ou talvez ela chegue até o Batismo e melhore depois dele, mas apenas de tal modo que pareça ter melhorado sem o sacramento (embora o tenha recebido), ou seja, por meio da convivência com amigos, da leitura de livros religiosos, do estudo e da reflexão, ou das tribulações da vida.
[VII] Além disso, ela pode receber o Batismo como mera formalidade ou por motivações mundanas e, ainda assim, aparentemente não se tornar pior do que antes. Se antes essa pessoa possuía uma mistura de bem e mal em seu interior, agora essa condição aparentemente permanece.
[VIII] E, novamente, quer tenha recebido o Batismo ou não, [ela] é suscetível às mesmas mudanças da mente, às mesmas influências religiosas; de fato, pode passar pelo mesmo percurso espiritual e ser gradualmente moldada pelos mesmos hábitos — quiçá ser afetada de forma notável, tão notável que possa ser chamada de conversão, mas que talvez ela chame incorretamente de regeneração.
Ora, não é possível que seja assim, se julgarmos segundo a Escritura e não segundo a aparência, já que ou essa pessoa já foi regenerada no Batismo ou ainda não foi regenerada, por não ser batizada. Não obstante, a mesma experiência religiosa (como às vezes é chamada) pode ocorrer com ela, quer seja batizada ou não.
Sem dúvida, é bastante óbvio e notável que encontramos em todos os sistemas (quer consideremos o nosso, ou aquele que prevalece no exterior, ou o de quaisquer organizações dissidentes) o mesmo tipo de caráter moral associado a este ou àquele tipo de pessoa; que a posição social, a riqueza ou o poder formam os homens do mesmo modo em todos os lugares; que todos os sistemas têm seus livres-pensadores; que todos têm as mesmas facções. Os homens são formados em todos os lugares pela influência das coisas visíveis sobre os mesmos tipos de pessoa, e assemelham-se uns aos outros, como que atestando, contra a Palavra de Deus, que o Batismo e a graça não são os princípios que realmente influenciam os homens, mas o mundo visível.
Portanto, digo que neste caso a experiência contraria a palavra de
Deus. Segundo esta, um homem só pode ser membro do Reino de Cristo se
nascer da água e do Espírito (cf. Jo 3, 5). Acrescente-se a
isso a natureza do próprio rito do Batismo e sua grande simplicidade
(mesmo supondo-se a prática da imersão, e ainda mais em caso de ablução
ou aspersão). Nenhum rito externo consegue realmente medir a grande
dignidade do dom da regeneração; se as cerimônias externas fossem sempre
muito cansativas, não seriam adequadas; um rito simples, por outro
lado, simboliza a gratuidade da graça dada a nós, a qual só requer
arrependimento e fé de nossa parte; mas, ao mesmo tempo, quanto
mais simples é o rito externo e maior (por outro lado) o dom escondido,
tanto maior é o desafio de crer que este é dado por meio do rito.
Portanto, quando consideramos sob os dois aspectos — o que vemos e a Palavra de Deus — a cerimônia do Batismo em si ou as pessoas que o recebem, percebemos um estranho contraste. Não neguemos que seja assim; por que deveríamos negá-lo? Contemplemos justa e calmamente a antítese, a dificuldade, como alguns a chamam, ou antes o desafio: o desafio da fé, a qual por si mesma vence o mundo (cf. 1Jo 5, 4).
2. Este, portanto, é um dos desafios da fé. Outro, que a tem atacado em todas as épocas, especialmente a nossa, é o sucesso obtido por iniciativas ou instituições que não estão em conformidade com a lei revelada do dever. Na antiguidade, aqueles que tinham fé ficavam perplexos com a prosperidade dos maus e o fracasso dos servos de Deus, como lemos nos Salmos e nos Profetas. Da mesma forma acontece no tempo dos Evangelhos.
Embora a Igreja tenha a prerrogativa (ausente em todas as outras religiões) de que jamais fracassará até a segunda vinda de Cristo (tendo nascido em sua primeira), mesmo assim, por um tempo, ao longo de gerações específicas; a bem dizer, em todas as eras e em todas as épocas, ela parece fracassar e seus inimigos, triunfar. Uma das peculiaridades da guerra entre a Igreja e o mundo é que este parece sempre prevalecer sobre aquela, embora na verdade a Igreja esteja sempre triunfando sobre o mundo. Os inimigos dela estão sempre triunfando sobre ela, como se estivesse derrotada, e seus membros estão sempre em desespero; ela, porém, permanece. Permanece e testemunha a ruína de seus opressores e inimigos. “Sim, vós os colocais num terreno escorregadio, à ruína vós os conduzis!” (Sl 72, 18).
Reinos se erguem e caem; nações se expandem e minguam; dinastias começam e acabam; príncipes nascem e morrem; confederações se fazem e desfazem, tal como se dá com partidos, empresas, atividades manuais, guildas, instituições, filosofias, seitas e heresias. Todas essas coisas têm um momento de glória, mas a Igreja é eterna; em seu tempo, porém, elas parecem ter muita importância. Como a Igreja deve ter se atemorizado nos primeiros tempos, quando a partir do Oriente a falsa religião de Maomé se espalhou por todo lado e os cristãos foram exterminados ou convertidos a ela aos milhares! Porém, atualmente fracassa aquela longeva ilusão, que, mesmo sendo alguns séculos mais jovem que a Igreja, envelheceu antes dela.
Do mesmo modo, não obstante a conservação do cristianismo até agora,
há neste momento muitas coisas que são um desafio à nossa fé, mas, por
nossa incapacidade de prever o futuro, não conseguimos enxergar a
brevidade daquilo que hoje se apresenta de forma soberba e exitosa. Vemos
diversas filosofias, seitas e partidos se desenvolvendo e expandindo, e
a Igreja parece fraca e impotente, como se o papel dela fosse ser
insultada e sua vocação, render-se.
Por exemplo, vemos homens num departamento de filosofia rejeitando os relatos da Criação ou do Dilúvio tal como se encontram no Antigo Testamento; outros rejeitando preceitos como o da esmola e semelhantes, tal como dispostos no Novo Testamento; outros questionando narrativas históricas contidas no Antigo; e outros negando interpretações de parte doutrinal da Escritura que sempre foram aceitas. Vemos formas imperfeitas de cristianismo alçadas à posição de culto oficial de Estados e nações, aparentemente dando bons frutos; a bem dizer, aparentemente florescendo mais que muitas formas mais perfeitas e católicas. Vemos a Igreja escravizada aparentemente florescendo mais que a livre. Vemos seitas aparentemente florescendo mais que a Igreja. Vemos princípios errados e doutrinas inconsistentes aparentemente fazendo dos homens aquilo que os cristãos deveriam ser, e que só o verdadeiro Evangelho realmente pode fazer com qualquer um. Vemos os mestres do que devemos chamar de heresia, e os ministros da divisão, fazendo o que a Igreja não faz ou nem pode fazer; vemos os grupos dissidentes enviando missões aos pagãos e aparentemente sendo bem-sucedidos na conversão deles.
Não me refiro ao fato de que podemos encontrar homens bons em grupos que não estão em comunhão com a Igreja. Isto não apresenta dificuldades à fé. O Deus que ergueu Elias e Eliseu em Israel em lugar algum disse que não estenderá suas misericórdias mais do que suas promessas. Refiro-me antes às violações perceptíveis de suas promessas nas desordens visíveis da Igreja e aos triunfos de outros grupos sobre ela. Quando considero fatos como esses, penso que aqueles que são expostos à tentação precisam de uma fé especial para manter-se próximos dos antigos caminhos da Igreja Católica, não ser afetados pelos sofismas e permanecer impassíveis ante os sucessos deste mundo que nos circunda.
3. Outra situação na qual experiência e fé se chocam seriamente, embora o contraste não seja tão claro, é a daqueles que negam a doutrina da Santíssima Trindade, da Encarnação, da Redenção, do pecado original ou da condenação eterna. Na verdade, muitas vezes o caráter e a vida dessas pessoas são tais que não apresentam dificuldade alguma ao cristão. São homens de hábitos imorais ou, no mínimo, grosseiramente autocomplacentes; ou são homens que por muitos anos foram indiferentes à religião e de última hora começaram a achar que deveriam adotar alguma crença, ou algo que lhes fosse palatável; ou são pessoas claramente mundanas, homens dissimulados (até onde conseguimos julgar os outros), ou então pessoas hostis e autoritárias.
Mas este nem sempre é o caso. Podemos conhecer pessoas de fé débil ornadas com traços de caráter muito interessantes, que nos provam severamente. É claro que não somos chamados a fazer nenhum tipo de juízo absoluto sobre ninguém; deixamos isso a Deus. Mas consigo imaginar o seguinte caso: um homem que, por um lado, nutre grande desprezo pelos temas mais sagrados — não crê nas doutrinas do pecado original, da condenação eterna e da Redenção; não tem opinião formada sobre nosso Senhor, não sabe se Ele é realmente Deus ou não; nunca recebeu a Sagrada Comunhão e raramente vai à igreja. E posso imaginar que o mesmo homem não só é amistoso, benevolente e amável — o que facilmente se concebe —, mas que demonstra (ao menos para a nossa percepção) integridade na ação cotidiana, visão honrosa das coisas, retidão, delicadeza de sentimento, ponderação e conduta generosa e, em certo sentido, confiança na Providência, intuição da grandeza e sublimidade da religião, conhecimento e admiração pela Sagrada Escritura, recorrendo a ela quando está com problemas e aplicando a si, de forma comovente, a Palavra de Deus — ao mesmo tempo que suas perspectivas doutrinais são aparentemente tão insatisfatórias quanto antes.
Para aqueles que se deparam com tal situação, não seria um desafio à fé — desafio tão grande quanto o da regeneração batismal — o fato de uma pessoa conseguir, com os olhos aparentemente abertos, negar o poder e a graça de nosso Salvador e a grande necessidade de sua vinda à terra, e mesmo assim ter tantos sentimentos e princípios religiosos? Um homem desse tipo age ou não sob a influência da graça? Se não age, o que é isso que ele faz com tanta frequência? Se age, como pode não crer?
4. Mencionemos mais um exemplo dessa oposição entre a fé cristã e a experiência da vida. A Sagrada Escritura nos diz expressamente que os impenitentes irão para o fogo eterno. Ora, não obstante o próprio Senhor tê-lo declarado de forma tão clara, a ponto de pensarmos que ninguém (crente ou incréu) possa negar que Ele assim o disse; apesar disso, é algo difícil de aceitar. Daí que os homens não creiam e se deixem levar pelas aparências.
De fato, não é difícil crer nesta doutrina estando fechado dentro de casa: se a pessoa vive em meio a livros, é agraciada com um círculo de amigos religiosos, vive feliz na casa dos pais ou, como a jovem ou a velha Ana, vive praticamente no templo de Deus, sua fé não será desafiada. Porém, se essa pessoa é atirada no mundo, se tem a oportunidade de se aproximar de homens devassos, incorrigíveis, mundanos ou céticos, ou se tem algum vínculo específico com qualquer pessoa desse tipo (o que é a mesma coisa), então ela perceberá como é dura a afirmação de que qualquer um, até o homem mais perverso, pode estar destinado ao castigo eterno. Nenhum homem é tão mau a ponto de não possuir, a nossos olhos errantes, alguma característica que o possa redimir. Não há nenhum homem que não possua um ou outro sentimento humano; e são justo estes sentimentos que deixam em nós uma espécie de convicção de que tal pessoa não pode estar destinada a ser companheira de espíritos malignos.
Não há nenhum afeto humano no Inferno. Um homem pode até mesmo ter as mãos manchadas com muito sangue, ser terrivelmente blasfemo ou muito devasso, mas ao menos em algumas ocasiões, quando está em momentos de dor e desânimo, mostra algo capaz de despertar nosso interesse e compaixão. Se não for o caso, então esse sofrimento mesmo parece servir de subterfúgio para sua defesa. Parece que sua capacidade de sofrer, e mostrar que sofre, vincula-o a nós e desvincula-o daqueles espíritos caídos, que não têm piedade nem fraquezas, mas são maus e impenetráveis em grau absoluto, ainda que sofram.
Até a feiticeira de Endor demonstrou alguma compaixão para com Saul, comovendo-nos ao fazê-lo:
Estando Saul assim turbado, foi aquela mulher ter com ele e disse-lhe: A tua escrava obedeceu à tua voz, expondo a sua vida, acedendo às palavras que disseste. Ouve, pois, agora também a voz da tua escrava: pôr-te-ei diante um bocado de pão, para que, comendo-o, recobres forças e possas fazer a tua viagem. Ele recusou e disse: Não comerei. Porém, os seus servos e a mulher constrangeram-no, e, tendo enfim cedido a seus rogos, levantou-se do chão e sentou-se num leito (1Sm 28, 21-23).
Tal foi a conduta daquela que manifestamente lidava com espíritos.
Portanto, infelizes de nós se preferimos as aparências à fé!
Infelizes de nós se, quando nosso Salvador, o próprio Verbo de Deus e
Testemunha verdadeira, fala claramente de um jeito, nós damos ouvidos à
voz da serpente, que diz: “Não morrereis!” De fato, não temos de modo
algum o direito de afirmar em absoluto que este ou aquele homem que
vemos, e que podemos apontar com o dedo, está destinado ao castigo
futuro. Deus nos livre! Pois só conseguimos julgar a aparência externa, e apenas Deus vê os corações dos homens.
Mas disseram-nos explicitamente que há pessoas destinadas a este castigo; que este é o destino dos que morrem impenitentes, sejam quem forem, e independentemente do que nos possa dizer a aparência das coisas, por mais que as fraquezas e instabilidades dos nossos corações levem-nos a argumentar contra essas terríveis verdades, por mais que se aflijam nossos sentimentos, imaginações e nossa razão, ainda assim “Deus é verdadeiro, e todo o homem é mentiroso” (Rm 3, 4); creiamos nele, apesar de o mundo inteiro ter se erguido para negar em uníssono as suas palavras.
Aceitemos a verdade — como ato de fé em Deus e como um alerta solene para nós — de que “todos os pecadores, todos os povos que se esquecem de Deus, serão precipitados no inferno” (Sl 9, 18); que serão “punidos com a perdição eterna, longe da face do Senhor e da glória do seu poder, quando Ele vier naquele dia, para ser glorificado nos seus santos, e para se fazer admirável em todos os que creram” (2Ts 1, 9-10).
Para concluir: rezemos para que Deus nos instrua. Precisamos de sua doutrina, pois somos muito cegos. Certa vez, quando as palavras de Cristo desafiaram os Apóstolos, estes lhe disseram: “Aumentai nossa fé.” Acheguemo-nos a ele de coração sincero: nós não podemos socorrer-nos; nós não conhecemos a nós mesmos; nós precisamos da sua graça. Seja qual for a dificuldade que nos apresente o mundo, quer quanto à doutrina da regeneração batismal, quer quanto à apostolicidade da Igreja, quer quanto à necessidade de preservar a fé do Evangelho, quer quanto à doutrina da condenação eterna (bem-aventurados aqueles que não sofrem com esse tipo de provação, mas alguns sofrem!), acheguemo-nos a ele com mente pura e sincera, implorando-lhe que nos revele aquilo que não conhecemos, que dobre nossos corações quando eles se obstinam, e que nos faça amá-lo e obedecer-lhe honestamente em nossa busca — e que esta não seja a busca de um mero conhecimento estéril, “que perece” (Jo 6, 27).
Fonte; https://padrepauloricardo.org/blog/infelizes-de-nos-se-preferimos-as-aparencias-a-fe
Referências
[São] John Henry Newman, “Faith and Experience”. in: Sermons on Subjects of the Day. New York: Longmans, Green, and Co., 1902, pp. 63ss434